terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Sidarta - Um pouco do que li e do que Me Permeia Hoje. Hoje.

" Sidarta percebeu-o e sorriu:
— Acerca-te de mim! — soprou ao ouvido de Govinda.
— Inclina-te mais! Mais ainda. Chega-te para bem perto de
mim! E agora me dá um beijo na testa, ó Govinda!
Govinda pasmou-se, mas, atraído por sua grande afeição
e por algum pressentimento, obedeceu ao desejo de Sidarta.
Achegando-se a ele, imprimiu-lhe os lábios na fronte. E nesse
instante aconteceu-lhe qualquer coisa singular. Enquanto os seus
pensamentos ainda se detinham nas palavras estranhas, proferidas
por Sidarta; enquanto seu espírito se esforçava, relutante e improficuamente,
por eliminar o tempo e por representar-se a unidade
de Nirvana e Sartsara; enquanto no seu íntimo certo desdém
pelas opiniões do amigo se debatiam com irrestrita ter.
Govinda já não enxergava o semblante de Sidarta, seu
companheiro. Em vez dele via outros rostos, inúmeros, toda uma
fila, uma torrente de rostos, centenas, milhares, que todos eles
apareciam, sumiam e todavia davam a impressão de estar presen-
tes simultaneamente, rostos esses que a cada instante se modificavam
e renovavam e, contudo, eram sempre Sidarta. Via a
cabeça de um peixe, uma carpa, com a boca semi-aberta em
infinita dor, peixe agonizante, de olhos vidrados. Via o rostinho
de uma criança recém-nascida, vermelho, enrugado, a ponto de
chorar, Vía a fisionomia de um assassino, no momento em que
varava com a faca o corpo de sua vítima e, ao mesmo tempo,
via esse criminoso a ajoelhar-se, algemado, para que o algoz
o decapitasse com um só golpe de terçado. Via Os corpos desnudos
de homens e mulheres, entrelaçados em posições e embates
de desvairado amor. Vía cadáveres prostrados, imóveis, gélidos,
vazios. Via cabeças de animais, de javalis, crocodilos, elefantes,
touros, aves. Via divindades, Crisna, Agni... Via todos esses
vultos e rostos ligados entre si por milhares de relações, cada
qual a acudir o outro, a amá-lo, a odiá-lo, a destruí-lo, a pari-lo
de novo. Cada qual expressava o desejo de moarer, era apaixonada
e dolorosa a profissão de efemeridade e, no entanto, não
morria, apenas se modificava, renascia uma e outra vez, tomava
aspectos sempre diversos, sem que o tempo se intercalasse entre
uma e outra configuração. E todos esses rostos repousavam,
flutuavam, geravam-se mutuamente, esvaíam-se e confundiam-se.
Mas por cima deles, sem exceção, estendia-se uma camada fininha,
irreal e todavia existente, qual tênue chapa de vidro ou
de gelo, camada transparente, casca, molde, máscara de água.
Pois, essa máscara morria, e essa máscara era o rosto risonho de
Sidarta, que ele, Govinda, nesse momento, tocava com os lábios.
E Govinda percebeu que esse sorriso da máscara, o sorriso da
unidade acima do fluxo das aparências, o sorriso da símultaneidade
muito além do sem-número de nascimentos e mortes,
o sorriso de Sidarta, era idêntico àquele sorriso calmo, delicado,
indevassável, talvez bondoso talvez irônico, de Gotama, o Buda,
tal como ele próprio o observara centenas de vezes com profundo
respeito. Era assim — Govinda o sabia — que sorriam os seres
perfeitos,
Tendo perdido a noção do tempo, já não sabendo se aquela
visão durava um segundo ou um século, ignorando se já existiam
Sidarta, Gotama, o eu e o tu, com as entranhas como que atravessadas
por uma seta divina, cuja ferida tivesse doce sabor,
com a alma enfeitiçada e confusa, detinha-se Govinda por mais
alguns instantes. Inclinava-se por sobre o rosto plácido de
Sidarta, no qual vinha de depositar um beijo, e que acabava
de ser o cenário de todas aquelas formas, evoluções e existências.
O semblante não se modificara, depois que, sob a sua superfície,
tomara a fechar-se o abismo da infinita multiplicidade. Sorria
silenciosamente, suavemente, ternamente, talvez com bondade,
talvez com ironia, assim como outrora sorrira o Sublime.
Govinda curvou-se em genuína reverência. Lágrimas de
que não se dava conta corriam-lhe pelas faces idosas. No seu
coração ardia, qual fogo, o sentimento de caloroso amor e de
submissa veneração. Profundamente, até ao chão, inclinou-se
Govinda diante de Sidarta, que se conservava sentado, imóvel,
e cujo sorriso chamava à memória do amigo tudo quanto ele
amara no curso da sua vida, tudo quanto já se lhe afigurara
precioso e sagrado.  "

--
Fernando Camargo da Silva
http://safra76.blogspot.com/

Ações INDIVIDUAIS: Resultados GLOBAIS
http://www.discoverybrasil.com/descubraoverde/

ANTES DE IMPRIMIR, pense em sua responsabilidade e compromisso com o MEIO AMBIENTE.

Accesse http://www.clickarvore.com.br, registre-se e plante uma árvore! (É gratuito!)
Nosso planeta agradece.

"Quem não estiver pronto a ousar tudo, mesmo sem saber qual é a recompensa, também não está apto a tudo o que deseja receber".

Nenhum comentário: